* EDITORIAL DO PROFESSOR EMENSON SILVA: *Hoje é mesmo o Dia de Todos os Santos?*


_No Dia de Todos os Santos, convido você a refletir sobre como aplica os conceitos e valores ensinados por sua fé. Este editorial propõe um olhar atento sobre fé, respeito ao diverso, tradição, cultura e, por que não, um pouco de política._


Como disse Cora Coralina, “O que vale na vida não é o ponto de partida, e sim a caminhada. Caminhando e semeando, no fim terás o que colher.” Talvez o que falte a nós, como sociedade, seja justamente a capacidade de semear respeito no terreno da fé alheia. E você, tem respeitado esse direito alheio à fé? Ou apenas o direito de quem professa a mesma fé que a sua?


Pergunta incômoda, eu sei, mas necessária, especialmente neste 1º de novembro, Dia de Todos os Santos. Um dia em que o país inteiro homenageia a santidade universal e esquece (ou finge esquecer) que essa universalidade tem cor, tem batuque e tem nome: OXALÁ. 


Estamos na Bahia, onde o sincretismo não é teoria, é sobrevivência. Aqui, onde o branco do pano e o som do tambor moldaram a identidade cultural, a data carrega o peso da contradição. É o dia do orixá maior, senhor da criação e da paz, mas também o retrato de uma sociedade que celebra a mistura enquanto nega sua raiz. A mesma terra que reverencia Iemanjá nas areias do Réveillon (muitas vezes, mais pelo embalo que pela crença) ainda se escandaliza diante de um xirê. A fé afro-brasileira segue viva, mas constantemente obrigada a pedir licença para existir.


O preconceito religioso por aqui é mais sutil, discreto, quase educado. Ele não grita, mas cochicha. Disfarça-se de cuidado, de zelo, de moral. Mora na piada mal contada, no olhar atravessado, no “Deus te abençoe” que vem carregado de julgamento. Não vemos templos sendo apedrejados, mas ainda há quem cruze a rua para não passar em frente a um terreiro. É o preconceito de luvas brancas, o racismo cordial que o Brasil aperfeiçoou. E isso, talvez, seja ainda mais perigoso, porque se disfarça de civilidade.


Enquanto isso, vemos outras crenças ganharem cada vez mais espaço e influência e não estou aqui para limitar expansão, principalmente de algo que deveria ser tão pessoal e acolhedor. Acredito que a fé é aquilo que nos permite continuar acreditando em um mundo bom e ela pode ser qual for, desde que respeite a liberdade do próximo e conviva bem com o adverso. Mas retomando, temos visto, cada vez mais, religiões ganharem espaços, principalmente as neopentecostais, que estão presentes em todos os setores da sociedade, da periferia e ocupando de forma importante e positiva, lugares onde nem as políticas públicas conseguem chegar ou têm interesse em chegar, até os bairros dos próprios fazedores dessas políticas que não incluem. Portanto, é inegável que essa expansão cumpre um papel social essencial. 


O problema não está na fé, mas em quem a instrumentaliza e isso não é uma questão exclusiva das religiões evangélicas ou cristã de modo geral. As falsas lideranças estão em todas as crenças e elas, desde os primórdios, entenderam que o medo é mais rentável do que o amor. O que aconteceu foi que as religiões caminharam com a humanidade e também passaram por uma revolução industrial, que transformou e transforma cada vez mais a fé em mercadoria. Vender a paz de espírito, através do perdão pela culpa é muito lucrativo, por isso os discursos moralistas se encaixam tão bem aos púlpitos e altares pelo mundo e o que deveria ser sagrado, torna-se incentivo a segregação, a exclusão daquele que se difere.


O avanço do conservadorismo, desse moralismo, das falas de representantes de marcas e não de credos, travestido de valores familiares, reacendeu fantasmas antigos. Voltamos a ver discursos que romantizam um passado coronelista (trazendo para a nossa realidade), onde a obediência valia mais que o pensamento. É curioso como se fala tanto em “resgatar a tradição”, mas raramente se menciona a ancestralidade negra, indígena ou popular. É uma nostalgia seletiva, que ignora que o Brasil sempre foi múltiplo, contraditório e mestiço. O problema é que agora, em tempos de redes sociais e de engajamento fácil, a intolerância encontrou megafone e patrocinador.


As fake news cumprem o papel que antes era das senzalas, mantêm as pessoas sob controle, alimentam o ódio, distorcem a fé, criam inimigos imaginários. E nós, distraídos entre curtidas e compartilhamentos, passamos a acreditar que só existe uma verdade, a nossa. É o triunfo do individualismo, o “eu creio, logo existo” e o resto que se resolva com Deus.


Nesse cenário, as religiões de matriz africana continuam sendo o espelho que a sociedade evita encarar. Elas representam a coletividade, o respeito à natureza e a convivência com a diferença. São religiões que não impõem dogmas, mas propõem convivência. Que não prometem o paraíso, mas ensinam a caminhar com dignidade na terra. Talvez por isso incomodem tanto: porque expõem nossa dificuldade em conviver com o outro, nossa necessidade de transformar diferença em ameaça.


Ilhéus, com toda sua riqueza cultural e espiritual, continua sendo o retrato dessa contradição. A cidade que vende o sincretismo como cartão-postal, mas que ainda olha com desconfiança para quem veste branco na sexta-feira. A mesma que canta o axé na praça, mas silencia quando o tambor ecoa nos terreiros . A intolerância aqui não se mede pelo grito, mas pelo silêncio. Mas, dentro do tambor tem morador. 


O Dia de Todos os Santos deveria ser um convite à reflexão sobre o que nos torna humanos e não uma reafirmação de fronteiras entre “nós” e “eles”. Quando o sagrado é usado para justificar a exclusão, perde-se o sentido da fé. Porque a fé, em sua essência, é ponte, não muro.


Hoje, portanto, é dia de repensar como temos vivido a espiritualidade. De perguntar se a paz que pregamos é apenas o silêncio do outro ou a convivência real com a diferença. De reconhecer que não existe fé verdadeira sem empatia.


Porque se até os santos, com todas as suas histórias e contradições, coexistem no mesmo altar, talvez esteja mais do que na hora de nós aprendermos a fazer o mesmo. Afinal, o que vale na caminhada da fé não é o ponto de partida, mas o respeito ao caminho do outro. E se isso ainda parece difícil, talvez o problema não esteja na fé, mas no que temos feito dela.

* DIRETOR DO CURSO GABARITANDO.
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